O enfraquecimento dos órgãos de fiscalização ambiental, o grande número de barragens em situação de risco e a frequência cada vez maior de eventos climáticos extremos são uma combinação de fatores que ameaçam a segurança de milhares de cidadãos mineiros.
Esse foi o principal alerta feito nesta quinta-feira (16), em audiência pública realizada pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). O desafio discutido ao longo de mais de sete horas foi evitar que se repita o que aconteceu em Porto Alegre e dezenas de cidades gaúchas, que estão literalmente embaixo d’água.
A reunião ocorreu num momento em que a Assembleia de Minas trata a situação ambiental como prioridade, com a realização do Seminário Técnico Crise Climática em Minas Gerais – Desafios na Convivência com a Seca e Chuva Extrema.
Participantes comparam tragédias em Minas e no Rio Grande do Sul A tragédia ambiental, social e econômica no Sul do País foi comparada diversas vezes aos rompimentos das barragens de rejeitos de mineração em Mariana (2015) e Brumadinho (2019).
Por isso, participaram da reunião autoridades e especialistas mineiros e gaúchos, justamente para traçar um paralelo entre as duas situações e tentar avaliar se a infraestrutura, o financiamento e as ações de monitoramento e segurança dos órgãos ambientais e de defesa civil são suficientes para o caso de eventos climáticos extremos em Minas Gerais.
O requerimento de debate é de autoria da deputada Beatriz Cerqueira (PT), que se disse decepcionada com o que foi relatado, posição compartilhada pela deputada Bella Gonçalves (Psol). A reunião foi comandada pelo deputado Tito Torres (PSD), presidente da Comissão de Meio Ambiente.
Além dos questionamentos feitos ao longo da audiência, diversos requerimentos foram formulados pedindo novas informações a órgãos como a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e a Defesa Civil.
Deputada denuncia falhas na fiscalização Beatriz Cerqueira traçou um paralelo entre os governos de Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, e de Romeu Zema, em Minas Gerais, desde 2019, com o afrouxamento da legislação ambiental para facilitar a ação de empreendimentos econômicos de alto impacto ambiental. E, na outra ponta, a negligência no funcionamento de órgãos ambientais e na conservação da infraestrutura preventiva.
No Rio Grande do Sul, conforme foi lembrado, a falta de manutenção de comportas e bombas hidráulicas tornou inevitável a invasão de boa parte da capital Porto Alegre pelas águas. Em Minas, segundo denunciou Beatriz Cerqueira, o comando do setor de fiscalização ambiental já foi trocado 11 vezes e foram colocados militares no local de técnicos.
A deputada também cobrou a fiscalização pelo Poder Executivo da aplicação de todos os dispositivos que constam da Política Estadual de Segurança de Barragens, instituída pela Lei 23.291, de 2019, mais conhecida como Lei Mar de Lama Nunca Mais. É o caso, por exemplo, da caução ambiental para os empreendimentos já instalados ou a serem implantados e, ainda, a desativação de barragens.
“Mas não estou otimista quanto a isso de um governo que não dá conta sequer de cuidar dos elevadores da Cidade Administrativa”, afirmou Beatriz Cerqueira, lembrando a recente pane nesses equipamentos, na sede do governo.
“Em Minas Gerais, o crime ambiental compensa. Se a barragem rompe, o governo depois fatura com a compensação. Ou então negocia um termo de ajustamento de conduta, o TAC, para ver quanto a empresa está disposta a pagar. Mas já está provado que isso não funciona, aqui e no Rio Grande do Sul”, frisou.
“Fica a lição para nós deputados, pois não adianta ser solidário com o povo gaúcho e cometer os mesmos erros. Na Assembleia, a gente discute muito temas do meio ambiente, mas na hora do voto sempre perdemos para os setores econômicos que se mobilizam politicamente”, lamentou Beatriz Cerqueira.
“É a banalidade do mal”, resumiu Bella Gonçalves ao criticar o desmonte de leis e da fiscalização ambientais nos dois estados. Segundo ela, diante das tragédias recentes, todos os esforços das autoridades mineiras deveriam estar focados na construção de um Estado mais resiliente a mudanças climáticas.
Tito Torres também criticou a flexibilização das leis e exigências, que geram os danos ambientais. “Temos que pensar de forma coletiva para que todos sejam beneficiados e não prejudiquem o ambiente e nossa vida”.
Frente à resposta inócua aos questionamentos apresentados oficialmente por ela à Semad, à Feam e à Agência Nacional de Mineração (ANM), Bella Gonçalves cobrou ainda a elevação dos parâmetros de risco das barragens no Estado. E, para ilustrar o risco representado por essas estruturas num cenário de eventos climáticos extremos, ela lembrou que, depois da enchente, vêm a falta de energia elétrica e de água potável e as doenças.
Minas Gerais tem atualmente, de acordo com a deputada, cerca de 350 barragens de rejeitos, 40% do total do País, 63 delas no Rio das Velhas. Nesse rio, fica a Estação de Tratamento de Bela Fama (Nova Lima), de onde vem cerca de 70% da água que abastece a Capital e 40% da Região Metropolitana.
“Se qualquer uma dessas barragens se romper, nós vamos viver um cenário de Mad Max”, ilustrou, em alusão à sequência de filmes apocalípticos.
A deputada Ana Paula Siqueira (Rede) lembrou o balanço de mortos, desaparecidos e desabrigados pelas chuvas no Rio Grande do Sul, ao cobrar mais consciência para o risco representado pelas mudanças climáticas. “Mesmo uma tragédia agora longe daqui traz efeitos para todos. Basta lembrar que, desde o Katrina, já é adotado o conceito de refugiado climático”, ilustrou, ao citar o furacão que assolou o Sul dos Estados Unidos em 2005.
Estruturas antigas e inseguras num estado de emergência climática O estado de emergência climática, já adotado para reforçar a necessidade de ações urgentes para frear o aquecimento global que resulta em eventos extremos, coloca em outro patamar a questão da segurança das barragens.
É o que avalia Alexânia Rossato, da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e moradora de Porto Alegre (RS). Segundo ela, o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (Snisb) apontaria cerca de 26 mil barragens no País, 10 mil delas com algum grau de risco de rompimento. “São estruturas antigas que não comportam grande quantidade de chuvas. Quando rompem, quem mais sofre, como sempre, é a população mais pobre”, alertou.
Como exemplo, ela apontou o estado de abandono, há mais de dez anos, de uma barragem do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) em Porto Alegre que, se romper, vai agravar a inundação na região da capital. Segundo ela, desde o início das chuvas mais fortes em 29 de abril último, 92% dos municípios gaúchos registraram algum tipo de dano.
O deputado estadual do Rio Grande do Sul Jeferson Fernandes (PT) fez um histórico do desmanche da legislação ambiental naquele Estado.
“Em 30 dias, ainda no início do governo de Eduardo Leite, 500 artigos do Código Ambiental foram destruídos sob o argumento que era apenas burocracia que impedia a liberdade econômica. Esse tipo de pensamento se aproveita do senso comum que quem é a favor da pauta ambiental é contra o desenvolvimento econômico. Em tempos normais, é muito difícil as pessoas acreditarem que algo de ruim vai acontecer”, contou Jeferson Fernandes (PT), deputado estadual pelo Rio Grande do Sul.
O ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Rodrigo de Medeiros Silva, reforçou que a posição do órgão é a mesmo da avaliação do MAB de que não existe barragem segura em um estado de emergência climática. “Existem milhares de barragens não vistoriadas e elas são um perigo no Rio Grande do Sul e em todo o Brasil”, arrematou.
“É difícil trabalhar na prevenção, pois é próprio da psicologia humana trabalhar baseado na experiência. Então, como cobrar ações de prevenção para algo que ainda não aconteceu? Esse é o grande desafio de atuar com direito ambiental”, disse o coordenador do Centro Regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente das Bacias Hidrográficas dos Rios das Velhas e Paraopeba, Lucas Pardini Gonçalves.
Por isso, o procurador Angelo Giardini de Oliveira, do Ministério Público Federal, reforçou a importância da caução ambiental, cujos recursos permitem ações preventivas, recuperação de áreas já exploradas e ações mais rápidas em caso de desastres ambientais, ainda mais quanto estão envolvidas barragens. “E a legislação atual de barragens ainda não leva em conta as mudanças climáticas”, apontou.
Além do perigo das barragens, o procurador alertou ser necessário urgentemente garantir a segurança das pilhas de estéril, uma tendência na atividade minerária diante das exigências de mudança no processo produtivo após as tragédias de Mariana e Brumadinho.
Defesa Civil reconhece que estrutura ainda não é ideal O chefe do Gabinete Militar do Executivo e coordenador estadual da Defesa Civil de Minas Gerais, coronel Carlos Frederico Otoni Garcia, destacou que é preciso criar as condições para que todos os municípios de Minas Gerais tenham uma estrutura equipada de Defesa Civil.
Atualmente, segundo ele, 20 municípios não têm esse órgão e, em muitos outros, há apenas uma pessoa representante, embora existam representantes em todas as 18 regiões em que o Estado foi dividido pela Defesa Civil.
Ele reconheceu que, apesar da estrutura de equipamentos e de pessoal ainda estar longe do ideal, é preciso atuar em outras frentes na gestão do risco, como no uso e na ocupação racional do solo.
“Eventos severos fruto da mudança climática já aconteceram, o que tem mudado é a recorrência e a intensidade. A chuva por si só não mata, o que causa as mortes e danos é a associação de outros fatores, como vulnerabilidade e o grau de exposição”, justificou.
O diretor de Gestão de Barragens e Recuperação de Área de Mineração e Indústria da Fundação Estadual de Meio Ambiente, Roberto Junio Gomes, afirmou que o governo tem adotado medidas preventivas para tentar evitar desastres com as barragens. Uma delas é a produção de um relatório de inspeção semestral, feito nos meses de março e setembro, com dados fornecidos pelas próprias mineradoras sobre as condições das estruturas e planos de enfrentamento de chuvas.
Marcelo da Fonseca diretor-geral do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) disse que medidas de monitoramento do clima também são executados pelo órgão e usadas para tomadas de decisões. Segundo ele, está sendo elaborado o Plano Mineiro de Segurança Hídrica, com previsão de ser concluído em novembro. Serão definidas prioridades para ações de recuperação das bacias, uso racional dos recursos hídricos, adoção de fontes alternativas de energia, de saneamento e de infraestrutura, para garantir a resiliência do sistema.
Ambientalistas defendem mudança de modo de produção e legislação mais rígida
Ambientalistas que participaram da audiência explicam que os eventos extremos não são consequência apenas das mudanças climáticas e, sim, sobretudo, da ação humana.
Presidente do Fórum Permanente São Francisco, Euler de Carvalho Cruz afirmou que já ultrapassaram o nível de segurança indicadores limites para o planeta, como poluição do ar, erosões, contaminação das águas e mudanças climáticas. “A intensidade das desgraças vai ser cada vez maior”.
Julio César Dutra Grillo, vice-presidente do Fórum Permanente São Francisco, ex-Superintendente Regional do Ibama, calcula que as consequências de excesso de chuvas em Minas Gerais seriam ainda mais desastrosas que no estado sulino. Segundo explica, só na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) existem barragens 20 vezes maiores do que as que romperam em Mariana e Brumadinho.
O excesso de água provocaria o rompimento de várias barragens simultaneamente, causando muito mais mortes e destruição. “O Estado tem que ser mais rigoroso e mais rápido”, adverte.
O integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Joceli Andrioli, também acredita que Minas não esteja preparada para eventos dessa magnitude. “Precisamos discutir novos modos de produção, que podem gerar mais emprego, tecnologia e proteger o meio ambiente. É possível, outra racionalidade produtiva”.
Coordenadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais e Professora da Universidade Federal de Ouro Preto (GEPSA), a advogada Tatiana Ribeiro de Souza e a arquiteta Karine Gonçalves Carneiro chamaram a atenção para que a necessidade de responsabilizar empreendimentos e políticos responsáveis pelos danos ambientais que, agora, estão gerando os desastres extremos.
“Há uma tentativa de passar para a natureza a culpabilização daquilo que não é natural. Eventos climáticos extremos e mudanças climáticas são desastres criados”, denunciou Karine Carneiro. “O desastre é uma cadeia de acontecimentos que não termina com o evento crítico. As obras de reparação causam problemas de saúde, econômicos e abertura de novos negócios abertos por eles”, completa Tatiana Souza.